Um escritor inglês chamado James Miller (William Shimmell) lança um livro
em Nápoles. Na plateia, Elle (Juliette Binoche), dona de uma galeria, que vive
há anos na Itália, assiste à sua conferência. O título da obra é exatamente o
nome do filme: "Cópia Fiel". Qual é a tese do personagem-escritor? A
originalidade não existe. É preciso ir além da superficial intencionalidade do
artista. Se reconstruirmos as intersecções, intertextualidades e motivações
envolvidas na criação de uma obra de arte, descobriremos que o original se
perdeu para sempre.
Em termos evolucionários e antropológicos, qual é a originalidade de
microvariações do código genético ao longo de milhões de anos? Cada fisionomia
humana seria um breve lampejo diferencial na textura monótona do universo. Toda
obra seria uma cópia mais ou menos fiel de obras anteriores. Por isso mesmo,
toda cópia tem uma beleza intangível. Todo simulacro traz em si uma potência.
Uma verdade.
Mas se no plano da arte isso é possível, como estender esse lema à nossa
vida? Existiria uma vida sem autoria? E ela seria desejável? Essas questões vão
surgindo à medida que Elle e Miller se deslocam para um vilarejo no interior,
em Lucignano, onde existe uma Gioconda. É apenas a cópia de um afresco feita
por um falsificador napolitano. Tamanha é sua perfeição que o museu a exibe
como se fosse original. Mais: os espectadores acreditam estar diante de um
Leonardo.
O espelhamento entre cópia e original não termina aqui. A certa altura,
a dona de um café pensa que Elle e Miller são marido e mulher. Ambos assumem a
designação desse terceiro que os nomeia. Um jogo se instala entre os dois. Uma
ficção da ficção se desdobra aos olhos do espectador. Nessa encenação, o
suposto casal compartilha fragmentos de lembranças para testar os limites da
representação. Sentimos uma mudança sutil. Aquele talvez não seja um encontro,
mas um reencontro.
O diálogo passa a dar vestígios de um possível reconhecimento. Começam a
ficcionalizar ou relembrar um passado a dois. Enredamo-nos em um jogo de
ilusionismo. Editam falas do passado? Improvisam como dois atores que se
apreendessem a si mesmos como atores? Eis-nos imersos na forma pura da
indecidibilidade, como diria Derrida.
Nessa obra-prima, o diretor iraniano Abbas Kiarostami propõe uma
contundente reflexão sobre o próprio processo criativo e o sentido da arte. E o
faz ao revelar os cruzamentos infinitos entre arte e vida. Ou seja: ao ser fiel
a uma das mais antigas e menos originais metáforas para a atividade criadora.
Nesse sentido, para além da dialética entre cópia e original, o filme de
Kiarostami sugere algo mais complexo. Algo mais visceral.
Define a própria condição humana como um fluxo tensionado entre a
autoria e a desidentificação. Um pêndulo entre originalidade e renúncia
criativa a toda fixidez. Somos, a cada instante tramado na película tangível do
tempo, a soma do que fomos, do que poderíamos ter sido, do que deixamos de ser
e do que viemos a nos tornar. Além disso, somos também tudo o que ainda
poderemos vir a ser. Deixar de ser. Transformarmo-nos.
Captar esse fluxo feito de silêncio e vertigem não é um patrimônio da
arte - essa parece ser a mensagem de Kiarostami. Não há distância alguma entre
o fingido e o vivido porque a ficção é a soma de todas as máscaras que
paradoxalmente nos aproximam mais do que somos. Enredam-nos no âmago da vida ao
nos distanciar daquilo que supúnhamos ser. Oferecem-nos o enigma de sermos
capazes de decifrar o que se esconde nas camadas virtuais do espelho. Apenas
assim é possível realizar o imperativo de Nietzsche: transformar-se no que se é.
Tornar-se algo que provavelmente sequer havíamos intuído existir sob nossa
pele.
Não é por outro motivo que a liberdade é uma das questões centrais do
"Homo sapiens" em sua jornada. E é por causa da dificuldade de
separar o vivido, o real e o imaginado que em geral esbarramos em uma visão
superficial da liberdade. Acreditamos que ser livre é poder ser o que somos.
Engano. A grande liberdade não consiste em sermos o que ilusoriamente
imaginamos ser. Consiste em podermos não ser aquilo que não somos.
A grande liberdade não é uma grande afirmação. É uma derradeira
renúncia. Não é uma afirmação do exercício de nossos limites. É sim a criação
de um campo de possibilidades ilimitado em direção ao que podemos vir a ser. A
liberdade não é a segurança do exercício de si. É o elogio da metamorfose e da
transformação dos eus virtuais que se ocultam potencialmente em nós - e que
desconhecemos. Modo puro da metamorfose.
Uma visão voluntarista desse ato pode nos enredar em camadas ainda mais
profundas de ilusão. Por isso a liberdade é tão difícil. Mais importante do que
ser livre para escolher é saber quem em nós escolhe quando escolhemos. Por que
este ou isto que em nós escolhe decidiu escolher o que enfim acreditamos ter
escolhido por livre vontade? Toda a autodeterminação humana é uma apreensão da
nossa finitude. Um reflexo de nossa precariedade. Um hino à contingência.
E isso porque, ao fim do caminho, muitas vezes nem sequer supomos quem
iluminou o caminho por onde decidimos caminhar. Seguir os instintos ou a moral
é obedecer mais aos nossos avós do que a nós mesmos. Muitas vezes nosso eu não
é nada mais do que um fantasma. Parido pelo medo. Projetado em um labirinto de
espelhos. Sermos fiéis a nós mesmos pode ser o mais triste dos enganos.
Ao definirmos o que somos, quem garante que não estamos sendo a cópia
fiel de nossos ancestrais ocultos em alguma caverna interior? Não por acaso,
como tragicamente intuiu Nietzsche, é possível nos darmos conta apenas no leito
de morte que toda nossa vida foi um equívoco. Essa luta constante da
autorrealização é o esteio mesmo da vida. Inescapável.
Outro dia, vasculhando gavetas antigas, deparei-me com um poema. Ao
lê-lo, a surpresa. Não pelo seu teor. Nem pela perícia ou a inépcia dos versos.
Tudo isso é secundário. O susto se deu por um fato muito mais prosaico: o poema
era meu. O continuum de identificação e desidentificação é a essência não
apenas de nossa apreensão temporal do eu. É também o enigma de toda arte.
Toda obra de arte é uma maneira de conferir sentido a instantes
recolhidos do tempo. Redimi-los do caos indiferenciado. Ampará-los em alguma
dimensão transpessoal na qual consigamos sentir as vidas alheias como se fossem
nossa vida. Em outras palavras: onde possamos ser fiéis a nós mesmos por meio
de outras vozes. A oscilação temporal entre continuidade e descontinuidade
simultaneamente dilui e reinstaura o eu. Só assim podemos falar em primeira
pessoa.
Não é por outro motivo que a mãe de todas as artes é a Memória, a deusa
Mnemosine. Reter os fios esparsos da vida e por meio deles preservar a
integridade parcial do que fomos um dia. Para além de todas as artes, essa
parece ser a grande Arte. A matriz de onde brotam todas as representações
mentais e afetivas de que somos capazes. Se o imaginário amplia as fronteiras
do real sem as dissipar, só o faz porque as linhas invisíveis da memória
conseguem dotar de unidade o que fomos e o que seremos. Traz as imagens do
sonho para a consciência até dissipar os limiares entre o possível e o
realizável.
Nos primeiros volumes de sua obra monumental, Proust insere a sonata
para piano tocada na casa dos Verdurin. Ela se transforma no tema do amor de
Swan por Odette de Crécy. Deleuze, em páginas impecáveis, percebeu muito bem
que o tema musical era um ritornelo. Ou seja: uma linha musical que se repete.
Sim. Mas que se repete articulando de modo diferencial a série harmônica. Em
outras palavras, não é a repetição de uma mesma unidade. É a repetição de
unidades que só são identificadas como unidades porque se repetem de modo
diferente. A diferenciação confere identidade àquilo que se diferencia de si
mesmo justamente ao se repetir.
No plano romanesco, esse recurso formal materializa como o Swan que
havia se apaixonado por Odette não é o mesmo Swan que depois medita sobre o fim
desse mesmo amor. No terceiro volume, vemo-lo até incrédulo por não conseguir
reconhecê-la no retrato da antiga amada feito pelo pintor Elstir. No plano da
vida, esse ensinamento de Proust demonstra que o desenvolvimento, o ápice e o
declínio do amor de Swan não são nada mais do que a possibilidade de estarmos
condenados a sermos diferentes de nós mesmos ao amar uma mesma pessoa. E também
de amarmos igualmente uma mesma pessoa cujo rosto nos escapa, multiplicado em
prismas no devir temporal, ainda que continue sendo formalmente o mesmo.
Por vias diferentes, talvez Proust e Kiarostami estejam encenando um dos
maiores enigmas da vida. Se toda a vida existe e apenas existe como um fenômeno
temporal. E se o tempo é a substância mesma de que somos feitos, como bem
definiu Jorge Luis Borges. Então a vida pode ser entendida como um infinito
gesto de diferenciação. Em outras palavras, como uma constante desidentificação
daquilo que supomos ser. Nesse sentido, sermos fiéis a nós mesmos pode ser o
caminho mais seguro de simplesmente copiarmos algo que desconhecemos. Uma das
formas mais sublimes de alienação.
Parafraseando o crítico Harold Bloom, a angústia não nasce do medo da
influência. Ela surge sim da falsa suposição da originalidade. Sermos originais
pode ser a mais anódina de todas as mentiras. E reconhecermos a replicação
infinita das vozes distantes que nos constituem pode ser o primeiro passo para
podermos ouvir os acordes diferenciais de uma música personalíssima. Eles são
as frases soltas que se unificam e se dispersam, dia a dia, na eterna conquista
de um rosto amado. Apenas assim podemos responder pelo que somos. Apenas assim
transformarmo-nos no que somos será enfim o último gesto de nossa liberdade.
Fonte: Valor Econômico, edição de 17/11/2013
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